Dia 103 da expedição
Recebemos hoje os três novos membros da expedição. Sei que as circunstâncias estão um tanto fora do planejado, mas ainda assim, foi um contato estranho. Natalya e Marco também sentiram alguma frieza nos nossos novos especialistas. Mas talvez seja só impressão. As demais atividades do dia transcorreram bem.
Em casa, tudo certo. Todos têm tomado cuidado com o último surto de gripe. Fico aliviado. Mais alguns dias, e estaremos todos juntos novamente. Às vezes me pergunto, como será a volta à rotina?
Dia 106 da expedição
Não podia imaginar que a nova equipe fosse trazer tamanho volume de carga. Levamos os últimos dois dias e meio para descarregar tudo e montar os novos experimentos – isto é, até onde nos deixaram ir.
O comando dos módulos Destiny ao Harmony foi deixado nas mãos dos novos especialistas. Inacreditável! Algo assim nunca havia acontecido. E para piorar, qualquer trabalho em execução nos laboratórios Columbus e Kibō foi sumariamente interrompido. Como poderia o controle de missão autorizar tal absurdo?
Afora essa resolução incompreensível, continuamos com nossas atividades de rotina. Já recebemos novas instruções para os próximos dias. Mas isso não me tranquilizou, ah não, nem um pouco.
Dia 109 da expedição
Nada de especial para registrar, exceto a gritaria que se fez ouvir na estação inteira. Ao que parece, um dos russos no Columbus danificou amostras importantes de algum experimento. Os outros dois bioquímicos ficaram malucos.
No fim, o tal russo – Dr. Ivan Volkov – acabou se cortando com o vidro da amostra. Pedi para Natalya ajudá-lo e ver se conseguia puxar assunto, mas não adiantou. Tentei o mesmo com um dos outros especialistas, o Dr. Anderson, também sem sucesso. Eles não conversam sobre nada, a não ser o estritamente necessário.
Em casa, tudo continua bem. Eles têm sido muito cuidadosos a respeito da onda de gripe. A doença já se tornou uma epidemia, e de acordo com as notícias, os sintomas são bem severos. Apesar de não terem sido noticiadas mortes, alguns dos infectados tem agido com violência. Não se fala de outra coisa na TV ou na internet.
Chegamos ao espaço, e um pequeno vírus continua nos dando tanto trabalho.
Dia 121 da expedição
Que dia! Detectamos um vazamento no sistema principal de filtragem do CO2 e geração de oxigênio da estação. Parece semelhante ao da última vez, mas de qualquer maneira, teremos que conduzir reparos tanto interna quanto externamente. O controle de missão, no entanto, é que irá nos passar o planejamento da operação. Ficaremos no aguardo.
O russo que se acidentou no outro dia não parece bem. Nas poucas vezes em que o vi, estava fraco e febril, mas já está sendo medicado. O que me surpreende é que seus companheiros não o ajudem.
Mudando de assunto, iniciei minha contagem regressiva. Faltam trinta dias para meu retorno! Já me sinto tão preso a este lugar que nem consigo imaginar como será deixá-lo para sempre.
Dia 122 da expedição
Realizaremos os reparos amanhã. Como infelizmente não poderemos sair pelos módulos russos, iniciaremos a caminhada pelo Quest, coletando as peças necessárias na plataforma externa, e fazendo a volta até chegarmos ao Zvezda, na popa. Teremos que ser rápidos.
E para completar, esta será a primeira vez na história da estação em que três astronautas sairão ao mesmo tempo. Argh! Escrever sobre isso me dá ainda mais indignação. O russo adoecido, Dr. Volkov, é quem sairá comigo e com Marco. Por que escolher um doente para ser o terceiro – terceiro – membro da equipe? Tanto risco, tanto desperdício, para quê?
Infelizmente, não há mais nada que eu possa fazer; por hora, só me resta dormir. Amanhã veremos.
Dia 124 da expedição
Consegui algo para minhas anotações, até que consigamos sair deste pesadelo. Minha nossa… É como se o próprio inferno tivesse vindo até nós, com seus demônios à nossa porta.
Da última vez que escrevi, estávamos prestes a efetuar as atividades extraveiculares. Eu, Marco e Dr. Volkov. Natalya e Dr. Anderson nos apoiariam do Quest, enquanto o Dr. Korniyenko, último do trio de biomédicos, nos apoiaria do Zvezda. Muito relutantemente, devo dizer, e com visível má vontade.
Saímos da estação em duas levas, gastando o dobro do nosso precioso ar. Fui o primeiro: adiantei-me, sozinho, até o Zvezda, numa longa caminhada. Em seguida, repetiu-se o procedimento na escotilha, e tão logo foi despressurizada, Marco e Dr. Volkov saíram. Este último, com acentuada dificuldade.
O italiano auxiliava o débil biomédico, que por algum motivo insistia em afastá-lo. Todos acompanharam a briga pelo rádio. O controle de missão não interveio. Mesmo assim parei e aguardei, atento ao que poderia acontecer.
Mas nada em nenhum treinamento, nem em toda minha experiência, me preparou para aquilo.
Volkov… Nunca pensei que veria algo assim. Após o embate, o russo começou a gritar. Urrava palavras que não faziam sentido algum. Seu traje se contorcia com violência, seus braços e pernas se agitavam desesperadamente, fazendo-o rodopiar. Pensamos que estivesse tendo uma convulsão em pleno espaço. Marco manobrou o traje para tentar ajudá-lo mais uma vez, mas era tarde. Os gritos cessaram, como se tivessem sido interrompidos. O traje apenas flutuava. Não havia resposta no rádio. Assumimos o pior.
Finalmente, Marco conseguiu se aproximar. Agarrou o traje de Volkov, girou-o com cuidado, e o encarou. E então, uma resposta do rádio do russo. Um som horrendo. Vazio. Gutural. Mal parecia o de uma pessoa. De repente, Volkov se debatia mais uma vez. De onde eu estava, tive a impressão de que ele tentava agarrar Marco. Pensei ter visto seus capacetes se chocarem, com força, mais de uma vez. O italiano gritou por ajuda, mas eu ainda estava no emaranhado da estrutura da estação.
Vi quando os dois se afastaram. Vi quando Marco ligou os propulsores do traje, e vi quando, com um chute, conseguiu repelir o russo de volta à estação. Mas o que ninguém notou era o quão perto Marco estava dos painéis fotovoltaicos. As enormes placas, impassíveis, absorvendo a luz do sol e gerando energia para a estação. Ele tentou, eu vi. Todos vimos. Tentou mudar de direção, mas ia muito rápido.
Do rádio, ouvi seu último grito, enquanto seu corpo se desfazia. A lembrança me assombrará para sempre. Não conseguimos trazer o que restou de volta à estação.
Não sei quanto tempo levei para me recuperar daquela cena. A voz de Natalya me trouxe à realidade. Volkov permanecia inerte, mais uma vez silencioso, enganchado junto à estação. Eu não compreendia o que havia acontecido. Afinal, o que se passava com aquele maldito?
Sem perder tempo, abri a escotilha da Quest e me dirigi ao russo, que estava perto. Levei um susto tão logo me aproximei: os braços do traje se agitavam desesperadamente, e aquele mesmo som terrível veio de seu rádio. Lutei para segurá-lo. Sua inabilidade em se controlar no espaço, porém, foi o que me permitiu trazê-lo de volta à estação.
Contudo, o espaço na escotilha era muito apertado, e não tive como escapar. Suas mãos me apertavam com uma força sobre humana, mesmo por cima do traje. Ele bateu a cabeça contra meu tórax algumas vezes. Somente a roupa me salvou de algo pior. Ele não respondia a nenhum comando, a nenhuma ação. Apenas gritava. Fechei a escotilha e tentei chutá-lo enquanto a cabine era pressurizada, mas ele não parava, e aqueles sons horríveis que fazia estavam me enlouquecendo. Pensei que não fosse aguentar.
Quando a câmara pressurizou, Natalya abriu a escotilha interna me puxou pelo braço. Volkov vinha junto, grunhindo, agarrando-me e dando cabeçadas. Com muito esforço, conseguimos separá-lo e segurá-lo. Natalya foi então abrir seu capacete, ao que Anderson gritou para que parasse. Nesse momento, o biomédico soltou o braço do russo, que avançou sobre a astronauta.
Foi numa fração de segundos. Os olhos de Volkov não eram os mesmos. Estavam arregalados, vermelhos, cheios de sangue. Sua boca espumava. Era o rosto de um louco. E então, com uma força descomunal, puxou Natalya para baixo e fincou-lhe os dentes no pescoço.
Era surreal. Ela empurrou o monstro, na tentativa de se livrar. Seu sangue esguichava, formando enormes bolhas vermelho escuras, num verdadeiro inferno que nos envolveu. A visão tétrica novamente me atordoou. Anderson chutou o demônio, enquanto me empurrava para longe.
Natalya implorou por ajuda, mas… Não consegui me mover. Ela me salvou, e fui incapaz de fazer o mesmo por ela. Lembro-me de seu olhar, e de me estender a mão. Enquanto aquela coisa, aquele monstro banhava-se em seu sangue!
Neste momento em que escrevo, estamos no módulo Destiny, trancados. Não ouvimos mais nada vindo do outro lado. Muito menos sinal dela…
Mas não podemos sair. Ele ainda está lá.