Nota: Mil desculpas pela demora, eu já tinha esse final escrito mas hesitava MUITO em publicá-lo, por achar que precisava de revisão. Esses dias desejei revisitar o Pós-Mundo que criei, e vasculhando os arquivos decidir tacar um belo de um foda-se e postar mesmo assim. Espero que gostem.
LUMINEUX
Diederik estava certo.
Foi rápido.
Bastiel se despediu do garoto, tinha de “preparar suas coisas”, incluindo os preparativos para a abertura do portão. Mal ele atravessou o Sacré, e um chute quebrou a lombar do infante.
-Profetinha de merda! – um Tenaz mais velho lhe agarrou pelos cabelos enquanto um segundo socou o estômago – Nossos pais se mataram por causa do Banimento!
Afundaram-no em uma poça fétida, e o afogariam se Dawud não tivesse arrebentado seus crânios com o bastão.
Uma multidão interveio. Elliot vinha a passos vagarosos, carregados de fúria, a mão cobrindo a Trindade desenhada no peito.
-Todos irão morrer se não saírem do caminho! – bradou o segundo pai, tendo o aço na horizontal, pronto para atropelar.
-E por que? Nosso destino seria diferente com essa cria do Demônio?
-Não lembro de passarmos fome antes desse Diabo das Catástrofes aparecer!
-Ele trouxe o Banimento! Perdemos metade da aldeia no sacrifício apenas para aplacar a ira de Besta!
– E o branquelo que te enraba no escuro? Ele negou Eso, é um pagão desgraçado! A frutinha de vocês dois envenena o cesto!
-Morte! Vou quebrar seus ossos e eviscerar!
-Infiltrados da Besta devem sofrer! Vingança, filho da puta!
-VINGANÇA!!!!
A saraivada de ofensas trouxe guerra.
Alguém três vezes maior que Dawud avançou. A Mão da Justiça investiu num golpe ascendente, explodindo-lhe a genitália. Jogou-o para o lado e varou pelo menos cinco mandíbulas da segunda onda. Elliot arrancou uma chama do símbolo magi e arremessou bem no meio do cercado, erguendo um círculo sobrenatural para guardar o filho.
A turba se espalhou. Espinhas brotaram em Abomasum, crescendo até descerem em gotas e estourarem em dezenas de crias voadoras, que logo recolhiam os mortos e avançavam nos vivos. A escuridão das areias borbulhava com o vermelho do massacre, a maceração do digestor marcava a partitura do apocalipse. Ossos estalando, gritos, carne cortada, cadáveres sem tempo de se amontoarem aos pés do casal. Trovões desciam em arcos, saltitando entre os corações inimigos.
Elliot caía de joelhos com o esforço magi. Dawud tinha cortes de máquina nos braços, flanqueado pelos arautos da violência. Socavam, mordiam, arranhavam. Uma parte já se amontoava no estrangeiro. A proteção de Diederik enfraquecendo.
De repente, uma figura surgiu e, com a mão nua, arrancou o pescoço de alguém que cogitava pular as chamas.
-KAI!
Os olhos de câmera foram repelidos, limitados ao serviço de recolher as sobras. E, criando ondas de choque, o grito paralisou as Terras Sacras. O bom senso ordenava olhos fechados, ficar parado, esperar ele ir embora, mas não houve escapatória.
Um a um, os esfarrapados voltaram seus inchaços e hemorragias para aquela inexpressão. Ken, envolvido em algo mais negro que o espaço, projetando apêndices como um buraco negro, as pupilas dilatadas e o resto da face reduzida a sugestões. Diederik, entre seus braços, dava sinais de respiração. Aliviaria Elliot e Dawud, caso estivessem diante de uma pessoa. O que acabava de se revelar para eles era inumano: podiam se dizer amaldiçoados, pois um Shinkoga Ryu não exibia sua natureza para os vivos. Amaldiçoados em dobro, pois a fúria não domava um ente das sombras…. E este se mostrava irritado em sua quietude.
Seus olhos eram Horizontes de Eventos. A voz, um chamado para o Abismo.
-Saiam todos. Quem estiver fora de suas casas, agressor ou não, implorará de joelhos pelo fim em Abomasum. Juro pelo Lago Sombrio que sofrerão para sempre, privados da morte pelas minhas mãos. Até o Eso desejará abrigo contra meu ódio.
O coup de grâce veio com o retorno esbaforido de Bastiel:
-A Voz de Eso se calou! Ele está morto! – usando o restante de seu ar, fez os quatro ventos sibilarem com a notícia. Aos ouvidos do povo veio uma segunda voz, imaginário coletivo da agonia.
“-O Agente do Mal só está começando…”
O portão estava fechado. O fosso separando Eso da Ruína Europa tinha uma ponte magnética. Desativada.
Nada que impedisse o trio de abandonar o vértice das perversões para sempre. Driller, quebrando o sepulcro entre as tensões de cada um, voltou-se para o Shinkoga:
-Tripod Jason era meu amigo. Eu o matei por misericórdia… O famoso pau arrastando no chão roubava o fluxo sanguíneo essencial quando subia, tipo um vampiro dentro das calças – um olhar bastou para conter os risos – ele não conseguia falar nem se levantar, mas isso não importava, não é “Shiver”? Bastava injetar estimulantes, lhe implantar um segundo coração, até estender sua mutação. Pelas Câmeras.
Então, depois de chutar a saída pelos ares, concluiu:
-Um dia ele implorou para morrer, inclusive deu o endereço do meu primeiro refúgio. Isso é tudo…
Não era o momento de relembrar as crueldades sofridas pelos irmãos Velvet. A identificação com aquela história o deixou pensativo, enquanto o pároco se agachava sob a ponte que não existia.
-Vamos ver isso aqui. Só preciso de alguns minutos.
Uma tela holográfica se materializou a sua frente. Escrevendo códigos com a voz, obteve uma segunda projeção: miniatura do objeto e seus detalhes. Restaurando as falhas com as mãos, logo a ponte se iluminou em néons vermelhos, azuis e brancos.
-Desculpem fazer tanto segredo, mas minhas capacidades se ligam aos artefatos, qualquer um deles. Basta tocar para eu compreender todos os seus detalhes. Sacaram?
-Ah, seu grande filho da puta! Veio espionar o Deus-Máquina por ordens de quem?
-Calma lá, senhor escondido nas sombras. Tirando a nação de origem, não sei mais nada de você. De Drill eu conheço as medidas e… Ai! Olha essa mão de ferro, meus olhos quase pipocaram!
-Te dar uns pipocos não seria uma má idéia, sabe?
Ken ignorava os gracejos na casca, mas por dentro algo familiar lhe trazia um sentimento esquecido na Boa Vista. Nem as meditações nas cachoeiras do Yosemite o fizeram senti-lo como agora. Agradecia ao Ämu no Sensei pela missão, somente por aquele momento. Justificava o sofrimento de outrora e os perigos do futuro.
Dali ao final da travessia, Ken esteve em Paz. Então levou as mãos a um bolso secreto e tocou o objeto octogonal. “Uma alma…” foi a explicação de Diederik antes de morrer nas mãos dos pais. “Pegue, não perca, e o destino trará seu irmão de volta. José está vivo, mas longe…”.
A cirurgia de extração da holo. Seu banco de dados continha almas.
Yami mizümi retinha parte das almas Shinkoga para si, garantindo o retorno dos abatidos, dissolvendo seu aprendizado na escuridão para o mergulho dos sucessores.
E aquela coisa cor de brim, contendo runas em cada linha e algo inteligível, porém desconhecido, no meio. Parecia um alfabeto retirado dos fósseis e reescrito de ponta-cabeça. Coisa de russo.
Associara isso ao momento que Dawud rugira após saber da morte de seu “pai”.
-Pároco, quais foram as palavras finais dele?
-Eu…
-Diga o que o desgraçado vomitou antes de morrer!
-…Anastasia. Ele só conseguia gemer por ela e procurar, até cair inerte. Coração, com toda a certe-
-Traga-o para cá. Daremos um enterro a ele.
Anny… O velho morreu pelas mãos do garoto que furtara a “alma” de seu amor noite passada, enquanto a Casa das Mães sitiava um ringue.
O “cerimonial” fez-se indescritível por essência. Cortemos as lágrimas, os berros até faltar a voz, a corrida para Abomasum, na esperança de ser consumido, detida mais de uma vez. Para Diederik, um casco de refrigerador como caixão. O único discurso partiu de Elliot, que após respirar bem fundo, lançou:
-Você não terá meu filho! Era o destino dele morrer, mas você não o terá!
Sua mágica imolou o corpo numa pira assustadora. As cinzas grudaram nos rostos molhados.
A Voz também rendeu uma fala exaltada, mas não as honrarias. Tão logo posto no chão, Dawud o encarou e, subitamente, desfigurou-lhe o rosto com o bastão, mutilando-o, eviscerando, batendo até arrancar a pele dos próprios punhos. Seu lamento sanguinário, encerrado após quase meia hora, acompanhado de uivos palpitantes:
-Era meu… você… era meu! Eu deveria te matar… Até isso me sendo negado! Era meu, meu!
Longa história, de acordo com o pároco. Bastava o ninja saber que o pequeno Dawud era molestado diariamente pelo pai, que o batizava de “Anny” durante o ato. A futura Mão da Justiça foi a responsável pela cegueira do velho, e ao contrário do imaginado, tal atitude lhe garantiu um dos cargos mais cobiçados na vila.
“E você ainda o defendeu”, outro pensamento não dito.
Após a demonstração na ponte, Ken se deu conta de que os objetivos do “sacerdote” estiveram bem diante de seu rosto. Não fosse pela tela, o julgaria como nada além de um rapaz bem inteligente e perspicaz, protegido por um colete igualmente disfarçado como leve, carregando uma mochila, roupas comuns, mais nada. Um mortal sem jutsus ou implantes.
Drill, por outro lado, usava roupas esportivas, um tanto desbotadas, mas funcionais. O fato de marcar suas peças íntimas não era um detalhe a ser apreciado em quem tinha uma broca pendurada nas costas e incontáveis varas de aço com ponta nas coxas.
Sobre Dawud e Elliot: ficaram para trás, pois iriam destruir Eso a qualquer custo. Bastiel disse para irem ao sótão, “encontrariam o necessário”. O Banimento deixou o cordão rolando na poeira.
-Manteremos o combinado. Não sei quanto a vocês dois, mas eu não hesitarei em abandoná-los tão logo encontre a rota para o Oriente – foram as últimas palavras de Körudo no Ken antes de avançarem para a Ruína: um complexo de prédios destruídos, tomados por vegetação. Nos cacos com o brilho idêntico ao da ponte, falhando, via-se o que um dia foram estradas sustentáveis de alta-velocidade. O resto era mato, árvores juntas ao ponto de ocultarem o sol, cogumelos, ruídos, uma verdadeira selva. Era quase como os perigos enfrentados por Roberto e José Nascimento, tirando os passos arrastados. Os perigos conversados no segundo dia de Colheita envolviam drug-zombies e seus fornecedores: vampíricos, casas inteiras espalhadas nos escombros.
Ken, como todo shinobi, era um especialista nesse tipo de praga. Bastiel, o único do grupo a entrar pelo Lumineux, se destacava como guia. Drill, obviamente, servia como radar ambulante e eliminadora de “impedimentos” durante a travessia.
Resta algo a ser mencionado: os calafrios (Shiver, Körudo), que tomavam o brasileiro de nascença, aquela sensação produzida quando se percebe uma esperança ínfima no horizonte. Depositar toda sua fé nela e se decepcionar, ou não acreditar e perder sua última chance? Tais palavras nunca lhe abandonariam, estivesse ele contemplando um pesadelo deserto, a divindade macabra sem esboçar reações, ou pisando nos galhos de monstros. A verdade é que a Paz, mencionada na travessia da ponte, vinha de algumas horas atrás, quando um profeta moribundo sentenciou:
”José está vivo, mas longe…”. Não importava como, mas seu irmão sobrevivera ao massacre. Estava em algum lugar, e se tivesse uma pista, por menor que fosse, mandaria o dragão negro e suas missões para a puta que pariu.
O impossível era a rotina dos irmãos Nascimento. Nos piores momentos, juntos ou não, diziam um ao outro:
-Nós sempre damos um jeito…
FIM