Nunca em vão

Especialmente para minha mãe, porém também para todas as outras.

À maneira do blog, eu dedico este conto à todas aquelas que cuidam de nós por tanto tempo e nos aguentam, o que simplesmente não é mole!

Bateu repetidas vezes no volante com lágrimas escorrendo. Não acreditava naquilo.

Uma forte pancada no vidro lhe chamou mais atenção dentre as inúmeras. Olhou com ódio para o doente que tentava ali entrar e deliciar-se com sua carne. Rangeu os dentes de tal forma que só parou quando achou que havia trincado um deles.

Não conseguia achar uma escapatória, simplesmente não conseguia.

A luz do sol entrava com dificuldade na cabine da blindada picape. Para qualquer lado que olhava, via apenas mãos, corpos e sangue. Ficou com vontade de bater no vidro e acabar logo com tudo aquilo, mas além de apenas conseguir quebrar a mão fazendo aquilo, não poderia desistir. Simplesmente não poderia.

Uma semana de planejamento! Uma semana dando duro reciclando encanamentos, partes de fogão e uma caixa d’água. Uma semana procurando um confortável colchão e enfeites. Uma semana atrás daquela comida que por sorte apenas encontrara hoje. E tudo em vão? Não conseguia aceitar. Não poderia aceitar!

Gritou e pisou no acelerador, como se seu ódio fosse dar forças à picape que lutava para sair daquele mar de mãos e corpos…

…Em vão.

Bateu com força a cabeça no encosto do banco, ficando levemente desnorteado. Olhava em falso para a marcha, deixando-se levar pela desistência…

“O que…” pensou indagando. Arregalou os olhos. Havia esquecido!

Mudou de posição a pequena alavanca ao lado da marcha, esperando um barulho ou indicação de que algo havia acontecido, tendo como resposta uma discreta mudança no painél luminoso, que agora exibia “4WD”. Levemente cauteloso segurou o volante e apertou-o firmemente, acelerando aos poucos.

O carro lentamente começou a se mover. Bendita tração nas quatro rodas!

As mãos foram ficando para trás, assim como as pancadas e os gemidos.

Havia se libertado.

Chegou ao prédio com lágrimas de felicidade. Entrou silenciosamente no apartamento e preparou a comida no pequeno fogão portátil. Abriu o pequeno quarto e verificou a arrumação, estava perfeito. Ligou o chuveiro e verificou a água, um pouco mais quente que gostaria, mas serviria.

Aproximou-se da gasta mulher deitada em um fino colchão.

“Mãe, desculpa te acordar, mas tenho uma surpresa para você… feliz dia das mães”

Natal

Apertava o braço com força, “caralho, logo hoje?!”. Fez uma bandagem improvisada e sentou-se encostado no chão. Não acreditava, depois de tanto tempo tendo cuidado, fazendo tudo certo, ele havia sido pego, era o fim. Olhava o corpo da mulher desfigurada no chão e em um súbito acesso de raiva, descarregou o resto da munição na cabeça do corpo. Sangue escuro e espesso agora escorria pelo chão em sua direção, mas não se importava, iria morrer mesmo.

Não estava triste por isto acontecer, mas por acontecer logo naquele dia. Há algum tempo estava animando a mulher com a festividade, tentando deixá-la com menos vontade de se matar, mas agora quem iria morrer era ele. Olhou o relógio e novamente confirmou a data, era dia vinte e quatro de dezembro.

Trocou a bandagem e levantou-se. “Ah, que se foda” pensou, “Se eu vou pra puta que pariu pelo menos faço algo antes”. Pegou a garrafa de champanhe e a pequena árvore de plástico e saiu da loja. Estava chuviscando, típico daquele verão quente com chuvas que aparecem só para encher o saco. Entrou na caminhonete e dando uma última olhada no lugar onde assinara seu testamento, partiu ao encontro de sua mulher.

A chuva era mais gostosa que um impecílho, fazendo com que os carros parados na estrada não fossem tão problemáticos. Abriu a janela e mesmo se molhando quis curtir o que achou que fosse a última vez que sentiria algo como a chuva gelada batendo em seu rosto. “Como é gostoso!” pensou, nunca em sua “vida antiga” havia parado para notar esse tipo de coisa, mas nos ultimos tempos começara a apreciar esses pequenos momentos de prazer.

Chegou. A casa era localizada no alto de uma colina, com muros altos e um portão um tanto quanto majestoso. Era uma casa linda e bem cuidada, daquelas que alguém gastava uma fortuna para construir e manter, porém não achava que era problema para os antigos moradores. Abriu o cadeado e dirigiu casa adentro, não precisaria se preocupar em fechar o portão, aquilo não seria mais um problema.

Ao estacionar em frente à casa, a porta se abriu e sua mulher recostou-se no parapeito para assistí-lo saindo do carro. Verificou seu braço por algum sinal de que havia sido mordido e nada viu. Desceu do carro mostrando a árvore e o champanhe com um falso sorriso vitorioso. A mulher retribuiu com um breve sorriso que logo desapareceu entre seus tristes e cansados traços.

Dentro da casa, foi até a sala e colocou-se a improvisar uma fonte de energia para algumas das lâmpadas natalinas da árvore. Não encontrara muitas pilhas e baterias, por isso conseguiu acender apenas 5 das pequenas lâmpadas, mas já era suficiente. Foi até a cozinha e ficou feliz de ver que sua mulher não esquecera de desligar o forno, que agora exalava um delicioso cheiro de perdiz assada. Os donos da casa foram gentis o suficiente para deixar uma enorme coleção de temperos, o que o homem esperava dar à perdiz que caçara ontem um gosto bom o suficiente para lembrar os velhos tempos.

Sentia-se um pouco quente, tonto e cansado, mas isso não iria impedí-lo. Aprontou a comida em uma assadeira elegante, colocando um pouco de um tempeiro de ervas finas. Arrumou a sala de forma que ficassem de frente à acesa lareira em um confortável sofá e se deliciaram com a ceia. Aproveitaram de forma que não aproveitavam a meses, porém de forma silenciosa e introspectiva.

Depois de comer, o homem foi ao banheiro. Sentou-se na tampa da privada e colocou o rosto entre as mãos. Estava começando a tremer. Sua testa e olhos queimavam e começara a suar. Levantou-se e lavou o rosto, que agora mostrava certa palidez. Seus olhos exibiam vasos sanguíneos vermelhos de forma a quase abraçar a Íris. Deu um soco na cerâmica, “por que tem que ser assim?! POR QUÊ?!” pensava. Chorou baixo enquanto pensava no que deveria fazer.

Saiu do banheiro com o rosto sem marcas de lágrimas e com a arma carregada em uma das mãos. Encontrou sua mulher encolhida no sofá chorando baixinho. Sentou-se ao lado dela e a abraçou demoradamente. Inicialmente a mulher não lhe retribuiu o abraço, mas depois cedeu, apertando o homem demoradamente entre as lágrimas…

…Atirou.

O corpo antes retesado deu uma leve tremida e depois relaxou, sem vida, sem choro.

Beijou-a na testa e deitou o corpo com carinho no sofá. Com a mão trêmula, pegou seu copo de champanhe e tomou um demorado gole, como se quisesse gravar aquela sensação para sempre em sua mente. Levantou-se e sentou em frente a lareira, apreciando as aleatórias chamas…

…Atirou.

Não soube o por que, mas não sentia mais dor agora. Sua visão estava meio turva, porém pelo que lhe pareceu horas, as pequeninas e coloridas luzes de Natal da pequena árvore lhe trouxeram algum conforto, e felicidade.