“ESTAMOS LOTADOS!” gritava para a multidão. “Mas que cacete! Será que não percebem que se as portas estão trancadas não era para entrarem?” pensou enquanto subia enfurecido as escadas. Olhou em sua prancheta o próximo paciente a consultar. Um garoto de oito anos com uma mordida profunda no braço esquerdo… “Mas que raios está acontecendo com essas pessoas?”.
Desde o começo da madrugada estava trabalhando como um condenado, cuidando de mais pacientes que seu desgastado cérebro conseguia processar. Suas olheiras denunciavam o cansaço, mas o pior era a dor nas pernas de ficar em pé por tanto tempo indo de um lado para o outro. E agora ainda estava estressado.
Chegou ao quarto indicado e checou pelo vidro para ver se havia alguma indicação de violência do paciente, porém o garoto estava dormindo. Apesar da precaução, nunca havia sido atacado como alguns médicos o foram. Abriu a porta e lentamente aproximou-se do paciente. O movimento compassado do torso do garoto indicava que ainda respirava apesar da hemorragia que sofrera. Deu a volta na cama e tentou verificar as bandagens do ferimento, ficando um pouco feliz ao notar que não estavam mais tão encharcadas de sangue. Pobre garoto. A anotação na prancheta não fazia jus ao ferimento, o músculo em seu antebraço havia sido quase arrancado por completo e, apesar de conseguirem não amputar, ele nunca teria a mobilidade completamente recobrada, na verdade estava longe disso.
Sentia dó, ninguém merecia aquilo, ainda mais quando o próprio pai o havia mordido…
Suspirou. Não entendia aquela epidemia, pessoas atacando pessoas? Mordendo ainda? Parecia um filme de terceira categoria.
Um pouco mais relaxado rumou em direção ao quarto do próximo paciente, já esperando o pior. Este havia sido mordido múltiplas vezes na perna e não tivera a mesma sorte do garoto, tendo que perder sua perna na esperança de sobreviver, que já era pouca.
Olhou novamente pela janela por precaução e, sem detectar nenhuma ameaça, entrou. O homem jazia deitado olhando perdidamente para o teto. Sua pele estava pálida e seu peito não se movia…
Ficou um tempo imóvel olhando para o corpo estendido na cama. Há muito tempo atrás não ligaria para aquilo, mas agora era outra pessoa, havia tomado rumo… e aquilo o atormentava, porém não mais que lembrar de seu passado…
Suspirou novamente e anotou em sua prancheta as informações… data e hora de óbito… “vinte e seis de julho de dois mil e treze…” disse para si mesmo baixinho.
“…Rrrrrrr…”
Surpreso fez uma expressão indagativa. “Que raios fora aquilo?” Pegou o estetoscópio em seu pescoço e tentou medir batimentos cardíacos, assim como tentar sentir respiração.
“…Rrrrrrrrrr…”
Apertou o estetoscópio com mais força, nada. “Deve de ser ar saindo do estômago” pensou.
Arregalou os olhos, acabara de ver o corpo estremecer levemente.
“Isso não foi ar…” falou baixinho deixando a confusão no ar. “Porcaria…”. Não era muito religioso, mas estava com vontade de chamar aquilo de coisa do demônio. Chegou com a orelha perto da boca do corpo e tentou ouvir algo, mas não ouviu nem sentiu ar saindo da boca do morto.
Sentiu um tranco na lateral da cabeça. Dor, muita dor.
“AAAAAAAAH!” gritou colocando a mão em sua orelha esquerda, sentindo um líquido quente aquecê-lo. Cambaleou chocando-se com um carrinho de equipamentos médicos, indo junto com este ao chão.
“Mas… que porra… que isso?” pesava confuso, não entendia o que estava acontecendo, era demais para processar. “Por que… ele tava…”.
—— —— —— —— ——
Sentiu-se estranho.
Acabara de despertar e sentia um estranho impulso. O que era aquilo? Ouviu palavras baixas que não entendeu e sentiu algo se aproximando.
Mordeu impulsivamente o que estava à sua frente, sendo banhado por um líquido quente que agradava seu paladar. Aliviou-se imensamente ao mastigar aquilo que mordera, apesar da estranha consistência. Que sensação boa!
Abriu os olhos limpando desajeitadamente o sangue em seu rosto. Com dificuldade sentou-se e olhou para si mesmo. Estava vestindo uma roupa branca. Conhecia aquela roupa e aquele lugar… era um… hospital? Como parara ali?
Ouviu um gemido. Olhou para o lado e encontrou um ensangüentado médico sentado no chão. O homem estava incrédulo. Segurava sua cabeça como se tentando impedir que o cérebro saísse pela orelha que não mais existia.
Sentiu novamente o forte impulso, porém desta vez não lutou contra. Queria sentir aquele sabor novamente, aquela satisfação.
Queria o médico.
…Grrrrr…